segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

7. Ecce homo

Cisco Kid

As mentes brilhantes são o que quiserem. Uma vez, fui o Conan durante uma tarde inteira, depois de ter visto "Conan the Destroyer". Assumi de tal modo o personagem que perdi dois botões da camisa com o desenvolvimento dos peitorais. Naquele momento em que saí do gabinete do Grande Chefe e avancei para a porta do elevador, senti que me transformava num misto de Tom Cruise em "Missão Impossível", Colin Farrell em "Miami Vice" e Mel Gibson em "Lethal Weapon". E quando me virei para a Aurora e a olhei nos olhos, percebi que ela se sentia profundamente atraída por mim. Parada à minha frente, disfarçava, num olhar espantado, a ansiedade com que antecipava os perigos da minha missão. Fiz-lhe uma suave festa na cara e lancei-lhe o olhar penetrante do Sargento Martin Riggs. “Sabes que és uma caixa de óculos muito interessante?”- arrasei. Ficou muito séria, certamente para disfarçar a emoção e virou-me as costas. Não devia querer que a visse chorar. Enquanto a porta do elevador se fechava, apreciei o seu movimento de ancas, em passo acelerado, rumo ao gabinete do Grande Chefe. Estava no papo.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

6. A metamorfose

Juro-vos que não sou nada dessas coisas, mas, naquele momento, apeteceu-me beijá-lo. Ah ganda Grande Chefe! Uma sociedade de matemáticos- que gloriosa visão. Homens virados para a realização, para a concretização, para a obediência. Acabar de vez com essa gentalha das "letras", sempre cheios de interrogações, de dúvidas, das tretas da subjectividade. Aprender as regras, receber ordens e investir na sua concretização- isto sim, é a dinâmica social dos vencedores. "Grande Chefe, pode contar com o meu apoio incondicional"- disse. "As informações que tínhamos a seu respeito, davam-nos a certeza de que podíamos contar consigo. Dentro de dias, irá receber instruções. A forma de o contactarmos, será sempre diferente para não levantar suspeitas. Até lá, esteja atento aos que o rodeiam e aos sinais de que lhe falei. Vá marcando os alvos. O inimigo está infiltrado em toda a parte". Eu bem sabia que sim e até conhecia as trombas de um desses traidores. Já nos encaminhávamos para a porta, quando me lembrei: "Grande Chefe, para estar aqui, não tive tempo de entregar o plano da aula para ser substituído". Ficou sério. "Caro professor, a partir deste momento, você é um combatente. Um agente secreto. Um tijolo da parede do futuro, vai ter o seu nome. Que importância tem uma falta injustificada, comparativamente com o futuro da Nação?". Tinha tocado no ponto. Encolhi a barriga, estiquei o queixo e despedi-me com um enérgico cumprimento. Sim, eu sempre fui um patriota!

quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

5. A Grande Causa

Matt Marriott, Tony Weare

"Plano de Acção da Matemática!"- repetiu, enfático, o Grande Chefe. "Tem um je ne sais quoi de aventura, de apelo à acção, de... juventude. Vai ser um sucesso". Felizmente, levantou-se e começou a passear pela sala, enquanto discorria sobre o plano. "É preciso fazê-los respirar Matemática, comer Matemática. Flocos de cereais com exercícios de Matemática, enigmas de resolução obrigatória para poderem almoçar ou jantar, equações do segundo grau para terem entrada no cinema. Dentro de duas gerações, a primeira palavra que as crianças irão dizer é π, o brinquedo mais desejado, uma tabuada!". Aproximou-se de mim e colocou-me um braço em volta dos ombros. "Meu caro professor, ambos somos homens de ciência. Nada dessas mariquices das filosofias, das artes ou da história". Abanei entusiasticamente a cabeça. "Somos homens de ciência, A SÉRIO! Sabemos que o progresso se constrói com Matemática e se destrói com filosofias". "E com histórias!"- acrescentei cada vez mais entusiasmado. "Muito bem dito, professor. A História é o atilho que faz tropeçar o caminheiro! Sempre com comparações, com interpretações subjectivas, com atenção aos pormenores. Autêntica ferrugem que impede o avanço da máquina. Por isso, vamos acabar com toda essa tralha”. Fez uma breve pausa, olhando-me fixamente, como se quisesse ter a certeza de que o estava a compreender. “Prepare-se para o que vai ouvir, porque só lho vou dizer uma vez. Será um segredo que você terá de guardar, se necessário for com sacrifício da própria vida. Sente-se preparado?”. A funcionária deslocou-se para a minha frente. Tirou os óculos e olhou-me nos olhos, aguardando pela minha resposta. “Pode contar comigo, Grande Chefe!” Na verdade, para acabar com a malta da História, estava disposto a tudo. “Não esperava outra coisa de si. Nós vamos impor a Matemática como disciplina única em toda a escolaridade obrigatória”. Não consegui evitar abrir a boca de espanto. “Não se esqueça do Português, Grande Chefe”- corrigiu a funcionária. “Sim, sim. Parece que a miudagem precisa de saber ler e escrever, para interpretar os enunciados. Enfim, a malta da Educação está a tentar resolver esse problema. De qualquer modo, 90% do tempo passado na escola, será dedicado à Matemática. A Pátria estará salva!”

segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

4. A ameaça

Corto Maltese, Hugo Pratt

Mal passei a porta, vi-o. Atrás de uma secretária enorme, impecavelmente arrumada, observava-me recostado no cadeirão. "Entre, entre. Não lhe ofereço uma cadeira, porque não temos. Quero ver se arranjamos umas massas para irmos aos saldos da IKEA. De qualquer modo, não o vou demorar muito". Não lhe conseguia ver as feições, porque estava em contraluz, à frente de uma janela enorme, mas a voz era inconfundível. "É para mim uma honra, Grande Chefe"- cumprimentei, fazendo uma ligeira vénia. Com um gesto, mandou-me aproximar, podendo então ver que, à sua frente, tinha dois grossos volumes de exercícios de Sudoku. "Um espírito racional"- concluí. "Caro professor, temos fundados motivos para acreditar estarmos a ser alvo de um ataque por parte de potências inimigas. Não... nada de tirinhos, ou aviões contra o Estádio da Luz. Um ataque muito mais subtil, logo perigoso, que visa controlar a mente das gerações jovens”. A luz que entrava pela janela, feria-me a vista, obrigando-me a semicerrar os olhos. “Ó homem, se eu estiver a ir muito depressa, diga. Mas o que se passa é que sabemos haver agentes infiltrados em diversos serviços e, sobretudo, nas escolas, para levar avante tão maquiavélico plano. O seu objectivo é tornar os nossos jovens pessoas cheias de dúvidas, pouco dadas a cumprir ordens, sem confiança nas instituições, para desse modo enfraquecerem a autoridade e facilmente tomarem conta do País. Ora, o sintoma de que um jovem começa a ser dominado pelos métodos dos nossos inimigos é... ter más notas a Matemática”. Já não conseguia suportar a intensa luminosidade e duas ou três lágrimas correram-me pela face. “Percebo a sua comoção, caro professor. Afinal de contas, aqueles tipinhos que nem pelos dedos sabem contar e que você pensava serem uns completos anormais, mais não são do que inofensivas vítimas de potências estrangeiras. Pois é. Mas não se preocupe. Temos um plano. O PUM!”. “O PAM, Grande Chefe”. Só então reparei que a zelosa funcionária estava atrás de mim. “PUM ou PAM, pouco importa. Pim, pam, pum, foi como a malta da propaganda lhe escolheu o nome. Mas, ó Aurora, explique lá ao nosso professor o significado da sigla”. A mulher avançou, colocando-se mesmo ao meu lado, ostentando uns óculos escuros Dolce & Gabbana. “Plano de Acção da Matemática”- disse.

domingo, 28 de janeiro de 2007

3. O corredor até ao gabinete do Grande Chefe

Jacques Tardi

Quando a porta do elevador se abriu, deparei-me com uma briosa funcionária de sorriso profissional que me pediu para a seguir. Aproveitei os poucos metros do corredor para rever a matéria: nó da gravata, calças na cintura, colocação da gola do casaco, vestígios de caspa nos ombros... Tudo em ordem, sem sinais das peripécias da viagem. "Aguarde um pouco, por favor"- disse-me, ao chegarmos a uma entrada alta e larga, com uma tabuleta dourada onde se lia "Grande Chefe". Entrou, fechando as duas pesadas portas atrás de si. Esperei alguns segundos, reparando, então, na decoração do corredor, com gravuras de personagens de histórias infantis: Bambi, Dumbo, Branca de Neve e... o meu preferido: Wart, o jovem de "A Espada era a Lei". O tal predestinado que conseguia retirar a espada encravada numa rocha. Há quanto tempo o não via... "e que saudades, Deus meu". Alto! Estava a deixar-me levar por sentimentalismos e até já recitava a "Balada da Neve". Reagi. Respirei fundo e virei-me, dando de caras com a funcionária que me observava, sorridente. "Vejo que foi sensível à nossa estratégia de humanização da Administração Central". Fiquei embaraçado. "Já pode entrar. O Grande Chefe aguarda-o".

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

2. Ao encontro do Grande Chefe

Frank Miller

Desde o primeiro momento em que entrei no automóvel, percebi que não valia a pena fazer perguntas. A velocidade a que atravessávamos as ruas era tal, que o meu único pensamento era saber onde me podia segurar, enquanto ziguezagueávamos por entre automóveis, pessoas, caixotes do lixo... "Ponha o cinto!"- ordenou o que ia à frente, no lugar do pendura. "A malta do trânsito anda assanhada e não verba para multas". A explicação foi interrompida pela derrapagem controlada com que circundamos uma rotunda, pneus a chiar, peões a gritar, carros a travar e eu sem saber para que lado me virar. Com uma guinada brusca metemos pela segunda rua e aceleramos de modo a aproveitar o semáforo que mudava para amarelo. Não conseguimos. Azar de um qualquer desgraçado que se apresentava pela direita e que nos evitou, atirando-se contra o marco do correio que ficava na esquina. Comecei a sentir suores frios e uma sensação de enjoo. "Veja o que faz! Se vomitar, tem que pagar a limpeza!". O filho da mãe do condutor devia estar à espera e espiava-me pelo retrovisor. Quando, de repente, viramos à esquerda, atravessando duas fachas de rodagem em direcção ao estacionamento de um prédio, não me aguentei mais. "Merda! Este gajo vomitou o carro todo"- berrou o condutor. "Vais pagar a limpeza e com produtos de primeira. No próximo vencimento, conta com o desconto!". Descemos dois andares do estreito corredor em espiral, sempre a acelerar, até travarmos bruscamente num espaço que dizia "Reservado". Por um momento pensei que não conseguíssemos evitar a parede. Despejei o resto. que pagava, tinha direito a serviço completo. "Olha-me para esta desgraça! E são estes merdosos que tomam conta dos nossos filhos". Os dois tipos observavam-me com ar de profundo desprezo. "Tens ali o elevador. Vais até aoandar e esperas que te vão buscar". Quando saía do carro, ainda ouvi o condutor a dizer para o outro: "Então? Consigo, ou não consigo atravessar a cidade a 180? Não te esqueças que sou eu quem escolhe o marisco".

quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

1. O primeiro contacto

Milton Cannif
Sempre disse que passamos a vida a convencer pessoas a irem ao nosso funeral, no entanto, há indivíduos com quem embirro e não estou minimamente interessado em saber o que pensam a meu respeito. Se puder garantir que morram antes de mim, tanto melhor, mas não tenho a mínima intenção de ir ao funeral deles. Atenção que não se trata de um repente emotivo- se me conhecessem sabiam que não sou pessoa para isso. Trata-se de uma avaliação rigorosa da personalidade, associada a uma cuidada observação com as mais reconhecidas técnicas da antropometria. Mas... adiante. Um desses tipos, é um imbecil de um professor de História da minha escola. Para quem se contente com análises superficiais, nada há a opor ao indivíduo. Mesmo comigo, sempre se mostrou simpático e educado, nunca manifestando o mais pequeno sinal de agressividade. O que é certo é que há muito penso que gajos de História são todos perigosos e o desenrolar dos acontecimentos viria a dar-me razão. Muita filosofia, muita subjectividade... enfim, gente de pouca confiança.

Quando ía a entrar na sala de professores, aconteceu cruzar-me com o tipo. Fez-se de simpático, abriu a porta e deu-me passagem. Disse-lhe secamente que não entrava e evitei conversas. Foi essa coincidência que me fez dar de caras com a telefonista que me disse "choutour, tem ali dois senhores que querem falar consigo". Estranhei, até porque não sou director de turma, pelo que estou safo de aturar papás individualmente e, sobretudo, aos pares. Logo pensei que devia ser alguém de uma qualquer editora e até pensei "calha bem porque estou a precisar de uma agenda nova".

Quando vi os sujeitos, fiquei de pé atrás. Gabardine com gola subida, óculos escuros, ar de permanente alerta. Rapidamente avaliei a situação, mas não encontrei motivo para tão estranho encontro. Tinha a renda de casa em dia, estava paga a mensalidade à minha ex-mulher, há muito tempo que não insultava nenhum vizinho...Cobranças de dívidas ou polícia, estava fora de questão. "Bom dia"- apresentei-me. Sem quaisquer rodeios, perguntaram-me se podia provar ser quem sou, o que me fez suspeitar estar a ser alvo de algum exercício da Olimpíada da Matemática. Sorri. Mas, quando comecei a apresentar o meu raciocínio, interromperam-me bruscamente, ordenando para lhes mostrar o Bilhete de Identidade. Comecei a ficar preocupado. Enquanto procurava a carteira, voltei a fazer a revisão dos últimos tempos da minha vida com uma concentração tal que quase deixava passar a entrada da professora de Francês. Que mulher! Enquanto lhes estendia o BI, reparava no corte das calças, justas que baste para evidenciar a elegância das pernas, na cintura fina... “Vai ter que nos acompanhar”- disseram. Aí afinei. Não se apresentam, exigem ver a minha identificação e ainda me ordenam para os acompanhar. “Pois. Nós percebemos. A tipa é boa como o milho, mas não temos tempo a perder. O Grande Chefe quer falar consigo”. É lá! Uma convocatória do Grande Chefe não era coisa que se desrespeitasse. “Mas eu não entreguei o plano de aula para ser substituído”- argumentei. “Deixe-se de mariquices, que o Grande Chefe está à espera”. Saímos em passo acelerado, mas ainda pude ver como a professora de Francês sorria para o tipo de História. Não havia qualquer dúvida: aquele gajo não era boa rês.